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XI BAILE DO SARONGUE

Realizado no Clube Monte Líbano em 28 de fevereiro de 2019
Lawrence Malstaf_Spheres.JPG

METAMORPHOSES

ARTISTAS
 
Lawrence Malstaf
_UTOPIA | SPHERES
Hall térreo | salão
Ricardo Becker
_ESPELHO, ESPELHO SEU
Hall primeiro piso
Valentina Homem
_VÍDEO METAMORFOSE (Da obra “A Menina e o Pote”)
Arte e animação com pintura em vidro: Tatiana C Bond Finalização: Antonia Muniz
Parede da escada
Yoann Saura e Tatiana C Bond
_A MENINA E O SARONGUE (Obra criada a partir da instalação performática “A Menina e o Pote” concebida por Fernanda Bond e Valentina Homem)
Salão
Maria Lynch
_MULTIVERSO
Varanda

BAILE FILOSÓFICO

Metamorfoses 

Emanuele Coccia generosamente ofereceu esse texto inédito para o Baile do Sarongue

Tradução: Madeleine Deschamps                  

                 Victoria Moawad

Sempre sonhei com isso​. Refugiar-me dentro de um casulo, não importa qual seja ele. Um cômodo do meu apartamento, uma casa de campo em um país distante, um submarino no fundo do mar. Cortar qualquer relação com o mundo e entregar-me ao trabalho da matéria-prima​. Sentir minha alma se entalhar e se soldar novamente sob uma nova forma. Vivenciar uma força que a esculpe, que a altera de parte em parte. Acordar e nada encontrar daquilo que eu achava que me pertencia. Acordar e perceber que o mesmo mundo a minha volta está irremediavelmente diferente - na sua textura, intensidade e luminosidade.

Sempre sonhei com isso​. Envolver-se na seda do casulo até cortar toda relação com o mundo por dias a fio. Construir um ovo macio e cândido dentro do qual possa deixar o corpo trabalhar. Atravessar uma mudança radical a tal ponto que o mundo em si não será mais o mesmo. Não conseguir mais enxergar da mesma maneira. Não conseguir mais escutar da mesma maneira. Não conseguir mais viver da mesma maneira. Tornar-se irreconhecível. Fazer parte de um mundo ​que tornou-se irreconhecível a si mesmo.

Sempre sonhei com isso​. Ter a força das lagartas. Ver asas surgindo do corpo de verme. Voar ao invés de arrastar-se pelo ​chão​. ​Apoiar-se no ar e não sobre a pedra.​ Passar de uma existência à outra sem ter que morrer e renascer e assim ​revirar o mundo sem sequer o tocar. A mais perigosa forma de magia. ​A existência mais próxima da morte​. A metamorfose.

Muitas vezes me perguntei porque isso era só um sonho. Porque eu nunca vi a metamorfose no estado de vigília. De antemão, há um mal estar em volta da mudança.

Fizemos do movimento e da transformação dois fetiches. E no entanto tudo é feito para tornar o movimento impossível. Nós aspiramos apenas a nos mexer, mudar de lugar na sociedade, deslocar-se para outra moradia, passar de um estado para o outro. E no entanto todas essas mudanças são uma fantasia: deslocamos a mesma vida para um novo cenário, uma agradável ilusão de ótica que vela as teias de aranha em cima da verdade, velho mobiliário intacto e envelhecido de nossas almas. A globalização tinha prometido uma mobilidade inédita na história da humanidade. Revelou-se uma variável na escala global do jogo da vida. Os deslocamentos são ​fervorosos mas todos/as os/as participantes continuam sendo os/as mesmos/as que eram no início. Os ricos permanecem ricos e os pobres sem novas oportunidades além daquelas que tinham na largada. Os/as ocidentais permanecem ocidentais em toda parte, os/as Africanos/as continuam a ser excluídos e punidos no Ocidente. Se esses movimentos são capazes de alterar a sociedade ou a geografia mundial, é como se essas últimas fossem duas faces de um cubo mágico: a natureza e o número de cores se mantêm iguais, elas trocam apenas de posição recíproca.

Dedicamos um amor sem entraves para a transformação do mundo, para seu progresso e melhoria, e no entanto tememos qualquer mudança efetiva. Preconizamos a mudança dos objetos a nossa volta, mas esperamos que isso não toque na nossa identidade: temos horror de perder tudo aquilo que nos importa. Transformamos o mundo até o esqueleto e no entanto tal mudança nos paralisa: recusamos de acompanhar as consequências por uma mudança de nós-mesmos.

 

A transformação é cada vez apenas simulada. Cada vez o movimento fica atravancado. Tem alguma coisa que nos impede de mudar. Tem alguma coisa que nos afasta da metamorfose.

 

Estamos acostumados a pensar a transformação e a mudança seguindo dois modelos principais: a conversão e a revolução. A metamorfose não é nem um, nem outro.

 

Na conversão é exclusivamente o sujeito que muda: suas opiniões, suas atitudes, sua maneira de ser se transformam, mas o mundo que o abriga não muda e de forma alguma deve mudar. Pois apenas um mundo que não foi tocado pela conversão pode testemunhar a mudança do convertido. Muitas vezes a conversão é a consequência de um caminho interior, feito de desafios e revelações, de longos exercícios de abstinências e ascetismo. Essa mudança pressupõe um domínio absoluto e completo sobre si-mesmo.

 

Não existe nada mais distante da metamorfose do que a conversão.

 

A conversão seduz: ela mostra e testemunha ao sujeito sua onipotência.


O convertido será obrigado a dizer a todos seus amigos/as ​ego non sum ego​, “eu ​não sou mais a pessoa que você conheceu.” Ele será obrigado a repudiar todas suas lembranças, a reprimir sua vida ou amputar uma parte de si. Ele deverá assumir uma nova face e uma nova identidade, mudar de vestimentas e de hábitos, não encontrar mais nada do seu passado imolado à sua vontade de mudança. Mas ele poderá ter sempre a certeza de que essa mudança vem dele e somente dele.
A nova identidade fictícia, inteiramente produzida por esse “eu” sem face que se esconde atrás dela, é apenas a celebração cotidiana desse poder totalmente domado, com a qual gostamos de identificar-nos para proteger-se de tudo que acontece no mundo.

Em uma metamorfose, a potência que nos atravessa e nos transforma não é de maneira alguma um ato consciente e pessoal de vontade. Ela parece vir de outro lugar, ser mais velha do que o corpo que ela molda, acontecer independentemente de qualquer decisão. E acima de tudo, não há nenhum movimento de repressão ou de negação de um passado ou identidade. Um ser metam​ó​rfico é, ao contrário, um ser que parece ter depositado toda e qualquer ambição em querer reconhecer-se num único rosto. A vida que atravessa a lagarta e a borboleta não pode ser reduzida nem a uma, nem a outra. Ela é uma vida capaz de habitar e abrigar simultaneamente diversas formas e faz desse caráter anfíbio sua força.

O segundo modelo, o da revolução, é muito mais conhecido e muito mais difundido. Na revolução é o mundo que muda; o sujeito que a causa e incarna a garantia da passagem de um mundo ao outro não pode transformar-se, pois ele é a única testemunha da transformação em curso.

A revolução é a forma de mudança predileta da técnica e da política modernas: as duas parecem pensar sua relação com o mundo exclusivamente sob o sinal de sua transformação radical. A técnica é talvez o paradigma da mudança que não pode e não deve tocar o sujeito: um instrumento técnico não deve de maneira alguma modificar-se quando ele transforma o objeto que ele toca. ​É​, ao contrário, sua ​estraneidade frente à mudança que mede a sua eficiência. Essa é a razão pela qual toda técnica se mantém uma

prática de exaltação do técnico, do sujeito da prática, acima do verdadeiro processo de melhoria do objeto sobre o qual se aplica.
Poderíamos fazer a mesma observação sobre qualquer política que faça da revolução seu próprio horizonte e seu objetivo principal. Pois no sonho de um mundo que seria inteiramente constituído a partir de um ato de vontade definido, tem muito pouco amor pela matéria e pelo mundo, muito pouco interesse pela mudança e muito narcisismo e tentativa de transformar a realidade no seu próprio espelho. Nesse sentido, toda revolução está mais próxima da conversão do que ​poderíamos imaginar: nos dois caso, o sujeito contempla sua própria potência.

 

Não existe nada mais distante da metamorfose do que uma revolução.
Há mais de dois séculos nós pensamos a técnica como uma projeção de um órgão anatômico, em um duplo sentido. Primeiramente, o objeto técnico seria a reprodução externa ao corpo da forma de um dos órgãos que o compõe: o martelo seria apenas a imitação do antebraço e do punho, os óculos a do cristalino, o computador a do sistema nervoso. Em um segundo sentido, todo objeto técnico deveria reproduzir o sujeito e sua vontade fora do seu próprio corpo: o mundo torna-se assim uma extensão do eu.
É o exato contrário do que acontece na metamorfose. O casulo não é um instrumento de projeção de si fora dos limites do corpo anatômico. Ele corresponde, ao contrário, à construção de um limiar onde todas as fronteiras e as identidades - tanto do eu como do mundo- são suspensas de maneira temporária. Ele é o quiasmo que faz do mundo o laboratório de gênese do eu e do eu a matéria mais preciosa do mundo, aquela que não para de transformá-lo.

Nós devemos considerar o casulo ​não apenas como paradigma da técnica, mas também do ser no mundo. O​s insetos - os mestres do casulo, os grandes demiurgos da transformação - nos enganaram. Eles nos fizeram acreditar que o casulo é um instrumento específico, parcial, efêmero na vida de alguns indivíduos. ​No entanto, ele é o elo da relação que tudo que está na Terra entretém consigo mesmo, com o resto dos seres vivos e com o planeta.


Mas o que é um casulo?

Um casulo é antes de tudo a prova que a nossa vida não pode estar atrelada a uma única identidade anatômica. Dentro do casulo, a vida encontra-se entre dois corpos, entre dois rostos, entre duas identidades aparentemente incompatíveis. O casulo é a construção da compossibilidade dessas identidades. Eis a prova que o indivíduo não vive da exclusão mas da multiplicação de rostos e corpos.

Entrar dentro do casulo é ter a experiência mais profunda da vida, reencontrá-la em sua forma mais pura. Essa vida que digere tudo e acolhe tudo, que sustenta e destrói tudo, essa vida que parece nunca contentar-se da forma que a acolhe, parece não ter nenhum limite. Essa vida aberta e indecisa, parece incapaz de renunciar a toda oportunidade de mudar. Estar dentro de um casulo é se dar conta que nossa vida é indeterminada e onívora. Ela é uma vadia que pode amar tudo, uma puta capaz de ir para qualquer lugar, de tornar-se qualquer coisa, de metamorfosear-se em tudo.

Um casulo é também a prova que a nossa vida nunca pode estar atrelada a um único ambiente, a um único casebre, a um único mundo. E não porque a vida adapta-se à tal ou tal ambiente, à tal ou tal mundo. A vida, não pode ser reduzida a um mundo específico por ser sempre um mundo por ela só. Um casulo é a prova que a vida constrói seu mundo inteiro. Um casulo é a prova de que não há diferença entre a casa e o mundo. Não porque o mundo é nossa casa, mas sim porque a vida transforma constantemente o seu espaço de vida e por essa mesma razão, a vida segue vivendo.

 

Pelo contrário, o casulo mostra que um ambiente, um mundo, não é para a vida uma geometria à qual adaptar-se. Mas sim, desde o começo, um laboratório através do qual ela pode reinventar sua geometria e forma.

Mais uma vez, um casulo mostra que a relação que cada um de nós, e que cada ser vivo de modo geral mantém consigo mesmo, não tem a ver com reconhecimento. Nós deveríamos considerar o casulo como a forma e o paradigma da consciência de si. A consciência de si não é o lugar onde o ser vivo se encontra, reconhece seu próprio rosto, coincide consigo mesmo. A consciência de si é um casulo. Ela é o espaço no qual cada um de nós é atacado por forças que transformam irremediavelmente o casulo e c​olocam-lo em um mundo totalmente diferente daquele no qual viveu. As ideias, as opiniões, as sensações - pouco importa se elas vêm de fora ou de nosso próprio corpo - são assim: forças que nos transformam, asas que nascem em nosso corpo de verme, intercessores de um mundo no qual não podemos mais pisar, um mundo que podemos apenas perceber voando.

Um casulo é a prova que a metamorfose é antes de tudo a relação que temos com nós mesmos.

E não s​ó no nível individual. Nossa forma individual, nossa humanidade tanto quanto a animalidade, a vegetalidade, o ser borboleta ou macaco, bactéria ou figo da Índia, cigarra do mar ou carvalho, tudo é um casulo. Esse é o sentido mais profundo da teoria da evolução de Darwin. Toda forma de vida é um casulo. ​C​asulo porque é a gestação de uma metamorfose da qual veremos o resultado em algumas décadas ou milhões de anos. Casulo porque cada espécie, para construir novas formas, não exige ajuda de outras espécies. Recolhe-se nela mesma, arruina sua história, destrói e reconstrói seu corpo, seus genes, fazendo uma colagem e bricolagem do que possui.

Casulo porque a forma que ele dará a luz nunca poderá ser nem conversão nem revolução. Nunca poderá tratar-se de uma remoção e de um descarte da forma que a precedeu.

Cada espécie parece nunca poder satisfazer-se plenamente de sua forma. Cada espécie deve sair, livrar-se de sua própria identidade, construindo outras. No entanto, cada espécie parece nunca poder livrar-se das formas que a precederam.

 

A vida das espécies no planeta é uma metamorfose constante. A metamorfose é a fronteira que separa e divide todas as espécies reunidas. No entanto, isso significa que a relação que temos com as diversas formas de vida é sempre uma relação metamórfica: nós poderíamos tornar-nos, ter nos tornado, talvez poderiamos tornar-nos aquilo que nos parece tão diferente. A metamorfose é o parentesco que une e divide todos os seres vivos.

Não precisamos de sexo ou de mutação genética para vivenciar essa metamorfose interespecífica. Nós vivemos essa experiência diariamente. Varias vezes por dia. A cada vez que comemos. Somos animais. Isso significa que para nós, viver coincide com o fato de ter que ingerir o corpo de outras pessoas vivas. Para nós, viver coincide com a tarefa de ter que transformar a vida dos outros, o corpo dos outros, em nosso corpo e vida.

A cada vez que ingerimos um ser vivo, seja ele vegetal ou animal, somos juntos o local, o sujeito e o objeto da metamorfose. A cada vez que comemos, transformamos-nos em um casulo dentro do qual uma outra forma de vida (um frango, um peru, um porco, uma maçã, um aspargo, uma lula) torna-se humana. A cada vez que comemos, transformamos-nos em um casulo dentro do qual um ser humano incorpora a carne e a vida de um boi, de um pêssego, de um bacalhau, de uma amêndoa.

Nós nem sequer precisamos de comida para vivenciar a experiência de sermos casulos. Deve-se apenas começar a viver. Muitas vezes esquecemos que tudo que existe na terra, tudo aquilo que vemos é uma transformação, uma metamorfose do corpo de Gaia, uma variação da sua carne, uma modificação alquímica do seu sopro. Somos a metamorfose da pedra terrestre, a metamorfose viva e pulsante da pedra. Tudo vem da terra: nem no sentido niilista, nem no sentido cristão, que não tem assim nenhum valor. Tudo vem da terra pois a terra é um imenso casulo dentro do qual todas as formas são geradas. E vice versa, o que chamamos de vida, sob todas suas formas, não passa de um casulo dentro do qual Gaia inventa uma nova forma de ser.

É a Terra (e assim o universo pois a Terra é apenas a matéria que escapou do sol), que inventa em nós uma nova forma de ser a partir da sua própria matéria.

Sob esse ponto de vista, cada um de nós, enquanto casulo, passou por tudo. Cada um de nós passará por tudo. Nos todos. Somos todos o mesmo mundo. Sempre a mesma substância. Nos todos sabemos disso. Os buracos da consciência são apenas isso. A urgência das outras consciências.

A metamorfose é simultaneamente a prova que de que há apenas uma única substância, a cicatriz que nos une a ela e à todas suas partes (o nascimento que nos une aos corpos dos outros, da mae e do pai dos quais somos as metamorfoses, o sexo, a comida etc.) e o processo de tecer, construir, secretar esse substância comum... Nao se trata de um colo, um substrato, um fundo. É, antes de tudo um futuro, uma possibilidade onipresente, uma realidade virtual. Tudo nos leva até ela, sobretudo a morte. A questão sempre é de saber como permanecer só um pouquinho si-mesmo, como nao destruir-se na metamorfose.

O mundo é um casulo feito de casulos.

Os casulos estão por todos os lugares. Toda célula viva é um deles. Todo indivíduo é um deles: cada um de nós é o espaço dentro do qual o mundo procura e encontra uma nova identidade.

 

Os casulos estão por todos os lugares.Todo meio é um deles.Cada espécie é um deles: uma forma de vida é o lugar de uma metamorfose constante que expõe um presente à erosão perpétua de um futuro desprovido de identidade. Os casulos estão por todos os lugares. A atmosfera é o maior deles no planeta. E a Terra na sua totalidade é apenas um imenso casulo que impede qualquer sujeito de satisfazer-se na sua própria potência.

 

Os casulos estão por todos os lugares. Eles não esperam pelo chamado da conversão ou da revolução. Dentro deles se constrói infinitamente um futuro irreconhecível e imprevisível que por várias vezes já obrigou cada ser e todo seu entorno a mudar de anatomia.

 

Sempre sonhei em fazer parte disso. Ao meu redor, apenas seda, branca e macia.

 

Sempre sonhei com isso. Sem necessidade de protestar. Sem necessidade de elevar-se contra outrem. Sem podridão. Basta mudar de pele. Simplesmente mudar de rosto. Basta trocar de corpo. Tornar-se outro.

 

Sempre sonhei com isso. Sem necessidade de conceber um mundo distinto. Sem necessidade de impor uma reforma ao mundo. Acordar e viver em um mundo que não tem a ver com aquilo que sabemos.

 

Esse sonho é a vida do nosso planeta. Esse sonho é a história da vida.

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